sábado, 7 de setembro de 2013

Uma pequena história sobre escritores


Num dia quente, os dois escritores Georges Simenon e Marcel Pagnol passeavam pelo Boulevard Saint-Germain, quando de repente Simenon assobiou baixinho, e exclamou: "Meu Deus, como ela deve ser bonita!"
"Quem?", perguntou Pagnol. "Só estou vendo dois rapazes."
"Está atrás de nós!", respondeu discretamente Simenon.
"E você consegue vê-la?"
"A ela não", respondeu com um sorriso o grande escritor de histórias policiais. "Mas posso ver a expressão nos olhos dos homens que se aproximam."


      (Extraído da revista Seleções, novembro/1973)

* Imagem: Trabalho de Elzbieta Brozek.

domingo, 24 de março de 2013

A CASA DO TEMPO PERDIDO - Carlos Drummond de Andrade


Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu. 
Bati segunda vez e outra mais e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.

Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado. 


*Imagem: Chateau de Miranda, Chateau de Nois, Bélgica.

Texto de Lygia Bojunga Nunes sobre livros


Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena, os livros me deram casa e comida.
Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava  num outro e fazia telhado.
E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.
De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntima a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas.
[...]
Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.
Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia;
e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava.
Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que - no meu jeito de ver as coisas - é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.
Mas como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra - em algum lugar - uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar.

sábado, 16 de março de 2013

O CONVITE - Oriah Mountain Dreamer


Não me interessa o que você faz pra viver. Quero saber o que você deseja ardentemente, e se você se atreve a sonhar em encontrar os desejos do seu coração.
Não me interessa quantos anos você tem. Quero saber se você se arriscaria parecer que é um tolo por amor, por seus sonhos, pela aventura de estar vivo. Não me interessa que planetas estão em quadratura com a sua lua. Quero saber se você tocou o centro de sua própria tristeza, se você se tornou mais aberto por causa das traições da vida, ou tornou-se murcho e fechado por medo das futuras mágoas.
Quero saber se você pode sentar-se com a dor, minha ou sua, sem se mexer para escondê-la, tentar diminuí-la ou tratá-la.  Quero saber se você pode conviver com a alegria, minha ou sua, se você pode dançar loucamente e deixar que o êxtase tome conta de você dos pés à cabeça, sem a cautela de ser cuidadoso, de ser realista ou de lembrar as limitações do ser humano.
Não me interessa se você pode ver a beleza mesmo quando o que vê não é bonito, todos os dias, e se você pode buscar a fonte de sua vida em sua presença. Quero saber se você pode conviver com o fracasso, seu e meu, e ainda postar-se à beira de um lago e gritar à lua cheia prateada: Sim!
Não me interessa saber onde mora e quanto dinheiro você tem.  Quero saber se você pode levantar depois de uma noite de tristeza e desespero, cansado e machucado até os ossos e fazer o que tem que ser feito para as crianças.
Não me interessa quem você é, como chegou até aqui.  Quero saber se você vai se postar no meio do fogo comigo e não vai se encolher.
Não me interessa  onde ou o que ou com quem você estudou. Quero saber o que o segura por dentro quando tudo o mais fracassa. Quero saber se você pode ficar só consigo mesmo e se você verdadeiramente gosta da companhia que tem nos momentos vazios.
 




CANÇÃO - Cecília Meireles


Ouvi cantar de tristeza,
porém não me comoveu.
Para o que todos deploram,
que coragem Deus me deu!

Ouvi cantar de alegria.
No meu caminho parei.
Meu coração fez-se noite.
Fechei os olhos. Chorei.

Dizem que cantam amores.
Não quero ouvir mais cantar.
Quero silêncios de estrelas,
voz sem promessas do mar.



*Imagem: Obra de M. Morteza Khatouzian.