sexta-feira, 13 de abril de 2012

Um texto de Clarice Lispector


   Eu só uso o raciocínio como anestésico. Mas para a vida sou diretamente uma perene promessa de entendimento do meu mundo submerso. Agora que existem computadores para quase todo o tipo de procura de soluções intelectuais - volto-me então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu enigma me interessa. Mais que tudo, me busco no meu grande vazio.
   Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pode me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim não um bocado de fatos, e sim, procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos, mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.
   Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trêmula. Como o que acontece com a água quando se mergulha a mão na água. Sou um palidíssimo reflexo de erudição. Minha receptividade se afina registrando sem parar as concepções de outros, refletindo no meu espelho os matizes sutis das distinções entre as coisas da vida. Eu que sou um resultado do verdadeiro milagre dos instintos. Eu sou um terreno pantanoso. Em mim nasce musgo molhado cobrindo pedras escorregadias. Pântano com seus sufocantes miasmas intoleravelmente doces. Pântano borbulhante.

(Extraído de Um sopro de vida)

2 comentários:

  1. Oi, Telma! Gosto muito deste texto. É uma de minha favoritas a Lispectorovna... e gosto de muitas coisas que vc posta aqui e no FB. Um abraço! Bluuuna Dona

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  2. Belo trabalho e belo blog professora Telma. Parabéns também pelos conteúdos escolhidos. Andreza

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